quinta-feira, 20 de novembro de 2008

Desespero...




Após ter percorrido as várias divisões da casa deteve-se na casa de banho. Olhou para o espelho, desesperado! Contemplou a sua imagem. Pausadamente ergueu a sua mão na direcção do espelho e tocou no seu reflexo, como que a acariciar-se. Nesse mesmo momento algumas palavras desagradáveis saíram da sua boca, significados que não se conseguiram decifrar. A par disso a sua expressão facial modificou-se nitidamente. Notou-se um olhar mais sombrio e distante, assim como o rosto a ficar rígido. As suas mãos tremiam e a sua boca vacilava a cada palavra terrífica que pronunciava. Impulsivamente puxou a mão atrás, aquela que há pouco acariciava a imagem espelhada. Num movimento forte esmurrou-a. Uma, depois outra e ainda outra vez, até ter a certeza que no lugar de uma figura completa tinha apenas estilhaços. Os seus próprios estilhaços, as suas próprias falhas.




Draco

sexta-feira, 14 de novembro de 2008

Corredor...


Ao longe um corredor escuro e deserto. Várias portas o complementam. Um candeeiro com uma lâmpada fundida preenche o cenário, aquele onde me encontro subjugado. Carrego no interruptor da luz na esperança de conseguir algum resultado. Engano meu!
Sinto um arrepio, depois outro. O escuro nunca foi a minha predilecção e conviver com ele não me traz nada de bom. Só há uma saída. Seleccionar algumas portas.
Chego à primeira porta. Tremo. Suo. Desloco a minha mão na direcção da maçaneta e, paulatinamente, tento movê-la. O mesmo comportamento é efectuado para mais algumas portas, porém, em vão. A sensação aterrorizadora eleva-se a cada segundo que passo naquele corredor. A cada tentativa de abrir as portas. A cada sinal de que não gosto deste local.
Ao fundo do corredor ouço uma porta fechar-se. Corro na sua direcção mas não a consigo abrir. Espreito pela fechadura mas o escuro impede-me de ver. Tento mais uma vez. O meu olhar fita o teu e de repente corro para uma das outras portas. Abro-a e entro.
Não fizeste por menos. As portas “proibidas” correspondiam a cada um dos meus medos. Fui obrigado a confrontá-los desde o momento em que me deparei com o corredor. O tal corredor, escuro e deserto.


Draco

quinta-feira, 13 de novembro de 2008

Rosa...



Não me voltes a oferecer rosas vermelhas, pois acabo sempre por me magoar nos espinhos que me invadem a pele e se disfarçam na perfeita convenção do amor. Não me voltes a oferecer rosas porque as tuas são envoltas em arame farpado e tu insistes em regar o pé da roseira com o sangue que brota das minhas feridas.
Não me voltes a oferecer rosas embrulhadas em sorrisos venenosos e falsas entregas. Eu nem sequer gosto de rosas vermelhas, estranho não é? Logo eu que tenho o vermelho como cor preferida. Não me dês mais rosas vermelhas, oferece-me antes uma rosa negra, esse negro aveludado da cor das sombras.
Vou surpreender-te e da próxima vez serei eu a oferecer-te flores, vou entrar no teu jogo e vou oferecer-te uma rosa tatuada de intenções e quando for a tua vez de sangrar, arrancarei as pétalas uma a uma e vou disfarçar um sorriso vitorioso quando os meus espinhos rasgarem a tua pele. Sempre gostaste de rosas, porque não aproveitar-me das tuas fraquezas? As regras acabaram de se tornar iguais.

Walter

domingo, 2 de novembro de 2008

Piano...


Uma casa, um jardim, uma entrada, um hall, uma sala, um piano. Mentalmente retomo o percurso que efectuei, desde a entrada daquela casa ao piano, ao sabor da música. Colcheias, semi-colcheias, notas isoladas, conjuntas, quiçá também partilhadas, pairavam no ar. Num tom provocador de ambas as partes - as notas que teimavam em se fazer ouvir e eu que decidi avançar ao som de uma melodia delicada e encantadora – fui invadindo um espaço que não me pertencia. Cheguei à sala. O volume da música que me havia levado ali tinha aumentado substancialmente. O espaço em si não me era estranho. Uma sala grandiosa. Janelas enormes deixavam entrar a luz do exterior, iluminando, assim, aquele espaço imenso. De repente abstraí-me de todo este cenário. Foquei, somente, o piano preto que pedia que me aproximasse. Passo a passo, paulatinamente, fui encurtando a distância que nos separava. Cheguei perto. Observei que as teclas se mexiam à medida que as ias pressionando. Fiz o mesmo! Pressionei algumas teclas. Escutei a melodia que se soltou! Depois de mais algumas tentativas reparei que saíste do banco. Cedeste-me o teu lugar. Nesse momento já não eras tu que pertencias àquele cenário. Uma sala, um piano. E eu!


Draco

terça-feira, 21 de outubro de 2008

O presente...


Secretamente o meu calendário vem contando os dias para o teu aniversário. A prenda há muito que se encontra embrulhada, esperando, com ânsia, que no dia em que a desembrulhes eu renasça de novo. Planeie cada pormenor, cuidei de cada pequeno detalhe, cada cor, cada textura, cada som, cada toque, cada melodia. Nada foi deixado ao acaso.
Com o meu melhor sorriso, dirijo-me a ti, que me esperas expectante por descobrir e abrir o mistério que tanto cuidado tive em guardar. Entrego-te em mãos o teu presente. Beijo-te uma última vez. Sussurro-te ao ouvido o que este ano não gravei num cartão, como aqueles que fazia acompanhar com todas as outras prendas: “Hoje presenteio-te com o que mais desejas, com tudo o que mais me pediste. Feliz Aniversário!”
Viro-te costas antes mesmo de poderes abrir a prenda que depositei nas tuas mãos. Percebeste nesse preciso momento o mistério e o significado que a minha prenda encerrava. Atrás de mim, acompanhando os meus passos, ecoa apenas o som do papel a ser rasgado, o som de uma corda a rodar, a rodar, a rodar… No preciso momento em que a porta se fecha entre nós, ouve-se já distante, o som de uma música que nos acompanhou e que cuja melodia tem servido de compasso aos teus pedidos, aos teus desejos, às tuas vontades, às tuas exigências…
Hoje presenteio-te com uma caixa de música… com a TUA música, com as TUAS melodias, com as TUAS cores, forrada com as TUAS texturas. No centro uma imagem minha, a de uma bailarina que espelha a sua imagem num espelho, que dança confinada à corda que lhe dás, ao som da música que impões, aos movimentos que tanto coreografaste… unicamente uma representação da mulher que até hoje fui para ti, uma criação tua. Presenteio-te com uma caixa de música que encerra tudo o que querias que tivesse continuado a ser para ti.

Jane

sexta-feira, 26 de setembro de 2008

reviravolta...


Calmamente escuto uma melodia que nada tem de inócua. Aumento o volume para me envolver na entoação que lentamente me invade. Fecho os olhos e cantarolo. Sou avassalado por um filme em que cada cena parece preencher as palavras que a música solta. Entendo, então, os compassos que lentamente ouço, os quais me mostram o que, nas entrelinhas, me tentas dizer. Mergulho num mar de lágrimas. Gota a gota, deslizando pela minha face, morrem nos meus lábios, quando me beijas ardentemente. Choro compulsivamente. Esta seria mais uma tentativa tua de replicar o jogo que tanto estimas. Também esta seria mais uma oportunidade para que fosse o elo mais fraco. Seria… se entretanto não tivesse baixado o volume. Se não tivesse limpo as lágrimas que teimaram em cair. Se não te tivesse apagado da vida que pretendo continuar…sozinho!


Draco

terça-feira, 2 de setembro de 2008

Do corpo...


Chegava como se este espaço fosse seu, como se o conhecesse desde sempre. Afinal conhecia todas as portas desta casa. Conhecia o bater da chuva nas vidraças e os lugares onde o silêncio era insidioso e se fundia e escondia em vícios solitários.
Dirigia os seus passos à sala à procura do fogo que lhe alimentava o corpo e encontrava a lareira apagada. No lugar do fogo encontrava cinza e mesmo assim estendia as mãos para se aquecer. Acendia velas e incensos e no desencontro das sombras deixava-se enfeitiçar pelos aromas inebriantes do desejo. A sala já era sua, geometricamente sua, e não lhe bastou. Procurava mais dele. Sempre procurou mais…demais.
Aproximou-se das janelas e abriu-as de par em par para que ele visse a dança da lua. E como se ela se apropriasse das palavras, disse que o amor dele era como as fases da lua. E que só ele não percebia isso. Disse-lhe que ele foi quarto minguante de amor enquanto se subtraía à paixão e ele, desconcertado pela veracidade do que se negava a reconhecer, recusou segui-la pelo corredor.
Ela desafiava todas as defesas dele e aproximou-se passo a passo olhando-o nos olhos. Depositou na boca dele o sabor das suas palavras com o seu travo a canela e ele destilava a entrega gota a gota apenas por ela, enquanto o seu amor se erguia em lua nova do sentir. Ela concedeu-lhe a sua mão, convidando-o a conhecer novas fases da lua e ele seguiu-a sem olhar para trás. Foram quarto crescente de desejo e chegaram à derradeira divisão. O quarto. E ele sempre soube que ela acabaria por lá chegar
Cruzaram a porta e o tempo e o espaço foram eles. Nada mais que eles, dois corpos desnudados que se reconheciam em luas cheias de fogo e mar. Pertenciam-se mutuamente e naquele instante eram suor, beijos e prazer. O odor dos seus corpos fundia-se sempre que se entregavam à busca do outro e ambos sabiam que já tinham esperado tempo demais.
Ela aconchegou-se no peito dele e num murmúrio disse-lhe “o teu corpo é a tua casa e eu já entrei nela”. Ele afagou-lhe os cabelos, beijou-a lentamente e olhando-a nos olhos respondeu-lhe “Tu sempre pertenceste a este lugar”.

Walter