Levada pela saudade de ti vagueio pela casa, ausente em mim e apenas com a tua presença em mim… no meu pensamento. Sou levada até à divisão da casa que silenciosamente selámos. Deparo-me a rodar a maçaneta de uma porta que esqueceu o sentir do meu toque, ao contrário da minha memória do teu toque em mim… O chão desta divisão mostra-se ausente de vestígios da minha e da tua passagem, vincado apenas pela inexistência do nós. A um canto, o piano, o único móvel da divisão… encontra-se coberto pelo lençol branco, aquele que ambos colocámos… tal como na nossa relação. No canto que tantas vezes ecoou a nossa música, aquela que ia muito além das notas que o piano gemia, música essa que nos envolvia, que nos enredava em notas que apenas nós sabíamos ouvir… em partituras nunca antes escritas e que um dia silenciámos… Hoje apenas o eco do silêncio se faz ouvir nesta divisão. Retiro o lençol que cobre o que um dia estava a descoberto, tal como o que sentíamos um pelo outro… Sento-me no banco e acaricio as teclas do piano como um dia tu me acaricias-te… Os meus dedos começam a tocar a medo a música que me chega de tempos que silenciámos… Nesta envolvência da melodia com os meus sentimentos, sinto as tuas mãos a guiarem as minhas sobre as teclas do piano… A cada tecla que pressiono, o teu toque em mim torna-se mais cálido… Sinto-te, a tua presença junto de mim… Sinto a tua respiração no meu pescoço enquanto guias as minhas mãos… Deixo-me enlevar e a música que criamos vai-nos envolvendo e nós nela… Tu deixaste de estar apenas na minha memória e quando a música termina o meu olhar depara-se com o teu… Também tu hoje te sentiste ausente em ti e também tu hoje apenas me sentias em ti… Não dei pela tua chegada… Hoje ambos sentimos que o lençol branco não mais tinha de permanecer sobre o piano… Hoje ambos sentimos que o silêncio que ecoava pela nossa divisão teria de ser silenciado… Hoje a nossa música teria de voltar a ser tocada pelas nossas mãos…
Jane
4 comentários:
Jane, você hoje me pegou pelo pé, hein, menina? Escreveu tudinho que eu queria ler! A começar, falando do meu instrumento, já me cativou de primeira, depois falando de um retorno, e um final feliz, lindo, lindoooooooo!!!
Vc me fez lembrar de uma ocasião em que eu participei de uma master-class de música erudita. A professora que me orientou disse que eu tocava bem, e até tocava com o coração, mas só ia entender aquela música quando, um dia, amasse ou sofresse por amor. Anos depois, eu a escolhi para ser minha orientadora no mestrado. Ela assistiu minha prova de ingresso, e por causa de um Intermezzo de Brahms, ela disse: "Está amando alguém?" E eu respondi que sim! Ela continuou: "Dá para notar claramente". Nunca me esqueci disso...
Beijos pianísticos e sobre as teclas, pétalas de rosa cristalizadas... :o*
Bela Metáfora!...Quase tão bela quanto o sentimento!:)
Belíssima escrita! Gostei muito.
a saudade mata aos poucos. Dizem que é boa, mas eu nao gosto dela...
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